Escrever, talvez,
apenas enquanto dorme.
(Mia Couto)
Por Vanessa Henriques
Na minha lista imaginária de coisas vergonhosas e pedantes para se chamar está: em segundo, escritora. Em primeiro, poeta. Curiosamente, já fiz/faço cosplay das duas funções.
Eu não sei quando eu comecei a gostar de poesia (acho que ninguém sabe isso aliás). Começou provavelmente com livros paradidáticos da escola, que eu lia sem pesar, ao contrário dos colegas. No pré-vestibular, me lembro de sentar nos cantos da escola e ler A Rosa do Povo, do Drummond, aos pouquinhos, meio gostando, meio sem entender. Minha irmã já havia me apresentado Manuel Bandeira e o próprio Drummond.
E o gosto pela poesia continuou, ainda que eu não seja de explorar novos autores. Gosto de três tipos de poetas, se for possível classificá-los: os que dão porrada (Álvaro de Campos, Manuel Bandeira), os que encantam pela delicadeza (Drummond, Mia Couto, Manuel de Barros) e os que não perdem o humor (Mario Quintana, Paulo Leminski).
A minha poesia ideal teria um pouco de cada uma dessas qualidades, o que faria de mim a melhor poetisa de todos os tempos. Mas não sou uma, não foi assim.
Uma estante, muitos amores (Foto: Vanessa Henriques)
Só que nada me impede de cometer uma poesia, assim, num ato de coragem numa tarde de domingo. Você escreve, olha, acha simpática, e mete o dedo no botão de publicar. Depois lida com a vergonha, o suadouro e os calafrios.
Não precisava ser assim, penso eu. As palavras estão aí esperando para serem tiradas para dançar. Não impõem regra nem padrão mínimo de qualidade. Se deu certo ótimo, se não deu, tudo bem, volte mais tarde.
Tanto que tenho uma lembrança muito antiga (e que permaneceu por causa da piada que se seguiu) de sentar na cama da minha mãe, caderninho a postos, e escrever uma música. Depois, meio envergonhada, mostrei minha composição para minha irmã. Eu não lembro se ela me encorajou ou se riu, mas o fato é que nunca esquecemos aquela rima pobre: Eu olho pro céu/eu olho pro mar/essa brisa bonita/que me faz sonhar.
Que desprendimento bom, sentar ali e dizer: hoje vou fazer uma música — que nada mais é do que poesia musicada. São as coisas que a infância leva e que infelizmente são difíceis de resgatar. No lugar dela ficou uma expectativa de excelência, que nada tem a ver com o exercício da escrita.
Mas quando a inspiração aparece, eu volto para a cama da minha mãe, sozinha com meu caderno, e deixo a brisa entrar. Se me encho de coragem, ela vem parar aqui. E por um tempinho, a vida fica mais interessante.
[croniquices, 7] Este texto integra as comemorações dos 7 anos do blog
A vida é um moinho, dizem. Aperta e afrouxa, sossega e desinquieta.
Por isso selecionei alguns textos que me tocaram nessa volta ao passado e resolvi dar uma cara de futuro para eles. A inspiração vem em trechos, o presente vem completo. Espero que apreciem e se reencontrem também.
Eu vou pra Minas.
Lá eu dispo a minha armadura,
Deponho as armas,
Refaço o caminho e o enfeito de sempre-vivas.
Eu vou pra Minas.
Subir as montanhas, prosear com o vento
(conversas antigas),
esquecer o tempo num pé de jabuticaba sabará.
Quem sabe ainda encontro guabiroba por lá!
Eu vou pra Minas.
E num galho de arruda
Vou me livrar do quebranto e do mal-olhado,
Espinhela caída e “vento virado”.
Eu vou pra Minas.
Lá há uma casa com ladrilhos,
Ora-pro-nóbis no quintal, terra vermelha,
madeira lustrada com óleo de peroba.
Vou buscar um terço pra rezar,
Vou trazer mais saudade e
Muita história pra te contar.
* Ana Maria é servidora pública, mas não escreve apenas memorandos. Sugiro a leitura de seu blog, Café no Alpendre.
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Não sei quem colocou esses versos nas paredes cinza do metrô. Seja quem for, saiba por estas linhas que fez uma pessoa muito feliz. Não há um dia que eu suba a escada que o ladeia e não pare para pensar em Ismália.
Os poetas simbolistas nunca foram meus preferidos. Acredito que a obrigação escolar em identificar seus tipos de rimas e alguns decassílabos irritantemente regulares me afastou de seus escritos. Mas a poesia é maior que preferências juvenis, e por fim me apaixonei por Ismália.
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
Mas se Ismália vivesse, digo, morresse, nos dias de hoje, não teria originado um poema tão bonito. Quem consegue ver a lua refletida em meio a tanto concreto? E, mais importante, teria sua alma chegado ao destino correto em meio a tantos arranha-céus?
Se vivesse no tempo de Manuel Bandeira, teria virado notícia de jornal. No de Augusto de Campos, um belo poema concretista, traçando o caminho da alma e do corpo de Ismália no papel. No de Clarice, acompanharíamos todos os passos que levaram essa pobre alma feminina ao desespero de seus atos.
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
E se Ismália vivesse em São Paulo hoje, passaria por essa mesma estação de metrô, insuportavelmente quente e lotada, aguardaria impaciente o próximo trem, afinal não teria conseguido embarcar nos outros três que o antecederam. Chegaria exausta em sua casa para, poucas horas depois, retomar o trajeto contrário.
Não veria lua nem mar, mas sua alma chegaria ao céu da mesma forma.