Por Vanessa Henriques
— Fusca azul! — gritam em minha orelha enquanto me estapeiam.
Que ódio que dá ser pego por essa brincadeira. Como eu deixei escapar esse fusca azul-calcinha de minha vista? Arregalo os olhos, procurando outro fusca no mar de carros. Ah, o próximo não me escapa! Tem que ser meu!
Aos que não conhecem essa pérola do humor automotivo: trata-se de uma brincadeira jocosa entre amigos na qual quem ver e gritar “fusca azul” primeiro ganha o direito de estapear quem vier pela frente. Costuma ser a alegria dos amigos dos desavisados e avoados em geral, vítimas fáceis num jogo de atenção como este.
Quem inventou a brincadeira do fusca azul deve ser um pária da sociedade. Imagine quantos amigos ele não precisou infernizar para que a troça caísse no gosto popular? Talvez ele tivesse um comparsa, que dirigiria o fusca por locais estratégicos onde ele estaria, garantindo o sucesso da operação.
E quantos olhares de reprovação ele não recebeu, afinal é uma brincadeira sem sentido e que tem o dom de deixar os que a desconhecem totalmente sem ação. “Quem disse que o fato de passar um carro te dá o direito de me socar?”.
Toda minha simpatia ao criador, afinal já recebi muitos destes olhares. Eles vão desde o complexo desconhecimento da regra até o mais profundo desprezo por continuar perpetuando tal sem-gracice pelo mundo. E como brincar sozinho não tem graça, sorrio jocosamente e tento mudar o assunto. Fazer o que se o grito escapou pela garganta antes de me certificar de que estava acompanhada de verdadeiros adoradores do tal do fusca?
E como o mundo está se tornando um lugar cada vez mais sem graça, é mais difícil do que se possa imaginar encontrar um bom parceiro de besteiragem. Daqueles que perguntam “quer comprar um pica-pau?” ou “é pavê ou pacumê?” e saem gargalhando sozinhos, por mais que o interlocutor tenha fechado a cara.*
E também tá difícil encontrar fusca — quanto mais azul! — em alguns bairros e cidades. Culpa do IPI reduzido e da desastrosa substituição do modelo pelo New Beetle. Mas nada se compara à decepção de ver um fusquinha dando sopa e não ter ninguém conhecido ao lado para descarregar a adrenalina. Quanto desperdício!
Meu sonho, confesso, era comprar um fusca azul e sair batendo em todo mundo. Imagina colocar todo mundo pra dentro e distribuir tapas indiscriminadamente? Lógico que só poderiam ser bons praticantes do fusca-azulzismo, senão podia terminar em briga séria.
Mas o que me impediu até agora de ir em frente e realizar esse sonho, além da questão financeira, foi a dúvida existencial que me assola: o dono do fusca bate nos outros ou recebe os tapas? Afinal de dentro do fusca não dá pra ver o fusca, mas quem entra o vê, mesmo que momentaneamente.
Enquanto não encontro a resposta para essa questão, que recai no imenso lamaçal que é a especulação popular, vou me divertindo com os fuscas alheios. Olha um vindo logo ali!
*Sobre a referência do pavê, sugiro um ótimo texto de Antonio Prata publicado na Folha de S.Paulo dia 23/01/2013: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/1218961-e-pave-ou-pacome.shtml