Jardim

“Para o homem

vale a polpa.

Para a terra
só a semente conta”.

Mia Couto

Por Vanessa Henriques

Tenho uma amiga bastante ansiosa que, curiosamente, escolheu um dos hobbies mais ingratos: a jardinagem.

Enquanto ela se queixava da demora em fazer sementes de mamão germinarem (fazia só uma semana!), lembrei do pinhão que reguei por meses até que ele virasse um pinheirinho. E dos coquinhos de jerivá que levam quase meio ano para exibirem suas primeiras folhas afiladas.

Chocada, ela me perguntou como eu sabia que essas sementes ainda iriam germinar, mesmo depois de tanto tempo. A resposta é tão simples quanto ameaçadora: a gente nunca sabe. É salto de fé com falta do que fazer, temperado com um “ah, já reguei o vaso do lado, o que custa regar mais este?”. 

Sementes são pacotinhos perfeitos de vida, mas cada uma quer algo desta terra. Mais ou menos sol, água, luz e nutrientes, num balanço difícil de adivinhar ao se olhar só por fora. E às vezes só não é sua hora, e elas aguardam a melhor estação para se revelarem.

Sementes são também irritantes e geniosas: nascem em rejuntes mas não sobrevivem em vasos espaçosos. Germinam rápido, e morrem na mesma velocidade. Escapam das mãos e dos bolsos distraídos de quem caminha as aprisionando por aí. 

Imagina o que é ser semente num mar de areia? (Foto Vanessa Henriques)

É por isso que nem todo mundo tem disposição para lidar com essas pequenas grandes metáforas do que é a existência. Comprar pronto, grande, florido, quando tudo “já deu certo” é geralmente a primeira opção — que eu já fiz muitas vezes. Só resta ter de lidar com a preservação deste status, sem a intimidade que quem começou do zero e já sofreu grandes decepções carrega consigo. 

Ser paciente, insistente e até um pouco teimoso é o caminho solitário dos jardineiros, mas cheio de belezas. Desconfio que todos eles queriam mesmo ser semente: se deixar ser carregado para longe com o vento, ser forte quando precisar se agarrar e, principalmente, germinar só quando der na telha. 



As aves que aqui gorjeiam

Por Vanessa Henriques

Não sei se alguém reparou, mas os sabiás já estão cantando a toda hora. Não toda hora, mas nas madrugadas, cada vez mais cedo, como algum Globo Repórter da vida já noticiou. A história é conhecida: é primavera, os sabiás querem se reproduzir, para isso precisam cantar, mas competem com o som dos carros, buzinas, panelaços, britadeiras, o moço que vende geladiiinho naturaaaaal e outros sons típicos de uma cidade grande. 

Então eles passam a cantar na madrugada, quando reinam quase absolutos. Reinavam, já que cada dia se dorme mais tarde e se acorda mais cedo — sabia que o Hora Um começa às 4 horas da manhã? (O que me leva à próxima pergunta: a que horas a Monalisa Perrone acorda?). E aí que os sabiás deram de cantar à meia noite, às 2 horas, às 3 horas, ao meio-dia. 

Como eu sei de tudo isso? Bom, para começar, meu trabalho doido® me faz ficar no trabalho até 2 horas. Antes disso, meu marido vai dormir, lá para meia noite, e me diz aflito que os sabiás estão cantando. Minha irmã, que amamenta de madrugada minha sobrinha, manda um zap: cantaram às 3 horas. O que só me faz concluir que os sabiás continuam cantando até a Monalisa ficar prontinha para entrar no ar.

Quando eu tinha uma vida regrada, com horários considerados cristãos, o cantar dos sabiás me incomodava. Acordava de madrugada para ir ao banheiro e, ao voltar para a cama, me irritava com os ‘firu-fiu-fiu-fiu’ a plenos pulmões — ainda que eles nunca tenham me impedido de voltar a dormir.

Firu-fiu-fiu-fiu (Foto: Carlos Oliveira)

Hoje eu gosto de ouvir os sabiás, ainda que eles me tragam uma certa solidão. Eu também ando por aí solta na madrugada, na hora em que era para estar quietinha nas cobertas. Olho para as poucas janelas com luzes acesas e busco companheiros: não para acasalar, mas para perguntar por que você está acordado nessa hora tão boa de dormir? Fixo em um ponto, à espera de uma luz que se apague, ufa, foi só tomar uma água e voltou a dormir. 

Tenho vontade de acordar meu marido para falar sobre os sabiás. Mas ele dorme tão silenciosamente, como se fosse um passarinho… deixo-o em paz. Tenho vontade de conversar com a Lua, mas isso parece tão antiquado e juvenil. 

Então só me resta abrir a janela e conversar com o sabiá. Dizer que eu também me sinto cada vez mais espremida pela falta de silêncio. Que eu tento me convencer que está tudo bem em viver ao avesso do mundo, mas que cada dia me sinto mais do avesso. De como esse nó na garganta deveria desatar num canto como o dele.

Vamos combinar uma coisa, amigo? Leve a sua melodia mais bonita para a minha sobrinha, uma que faça a mãe dela também de você se lembrar. Depois, embale meu marido em sonhos com asas. E não se esqueça de ajudar a Monalisa a acordar. 

Conto com sua companhia ao menos nessa primavera, e espero que até você partir eu já esteja pronta para piar.

Deixando pegadas

Por Vanessa Henriques

Gosto de fazer trilhas. É uma paixão que descobri desde que comecei a namorar meu marido. No começo eu tinha receio, me embrenhar no mato, toda estabanada, meninona de apartamento, coisa boa não podia sair. Hoje sou só amores e coleciono histórias e trilhas preferidas.

Claro que não saio por aí de facão na mão e perneira abrindo caminhos. Costumo visitar parque estabelecidos, trilhas fáceis e médias, com ou sem guia. Já fiz trilhas memoráveis por bons e maus motivos. Mas algumas coisas são constantes: o ar puro e fresquinho, o deslumbre com a beleza da floresta — geralmente do pouco que nos resta da rica Mata Atlântica — e as botas sujas de terra.

Botas essas que já estão nos seus últimos passos. Foi por causa dela que comecei a pensar nesse texto. Comprei a minha deve fazer uns 7 anos, quando percebi que não era uma boa ideia sair pelo mato com tênis de corrida. Na primeira usada pisei numa poçona de lama — o que poderia ser um charme, afinal ela foi feita para isso e não entrou nada na minha meia. Mas a verdade é que segui por um lado da trilha enquanto todo mundo foi pelo outro, e chafurdei literalmente.

Depois da bota fui ficando mais paramentada: roupa comprida (é sempre a recomendação), meia longa, boné (odeio e sempre esqueço, mas também é bom), uma pochete (sim) extremamente útil, mochilinha de ataque. Acho que é isso.

Logo, quem me vê por aí só pode achar que sou uma trilheira raiz, descolada, fazedora de raftings e escaladas, saltadora de parapente, telespectadora do Discovery Channel. Curto a fama, mas ela não podia ser mais falsa. Não só pela minha parca experiência, mas justamente por causa dos EPIs que utilizo.

Nada mais raiz do que fazer trilha descalço, de chinelo havaiana, de crocs, de tênis liso de corrida, de all star branco, de calça jeans, de vestido, e até mesmo carregando uma bolsa de palha com um sousplat dentro (tenho testemunhas). Todas situações reais.

Isso é coisa de quem se joga no rolê sem saber bem o que vai acontecer e vai com tudo, não tá nem aí para as consequências. Que escolhe a roupa pelo humor, e não pelo programa. Quem consegue curtir o passeio apesar das péssimas condições em que se encontra. Eu sou muito nutella, não faria nada disso.

Mas devo confessar que um dia já fui mais raiz. Fui com meu marido a uma trilha desconhecida, que envolvia basicamente subir um morro, no melhor espírito ousadia e alegria. Todos diziam que lá não tinha banheiro nem água, era bom levar alimento e alguma bebida.

O que os dois malandros fizeram? Botaram um (repito, um) polenguinho e uma (repito, uma) garrafa de água na bolsa, eu de shortinho jeans e blusinha de algodão, ele de bermudão caqui e uma blusa de corrida (mandou bem) e fomos lá subir por 1 hora um morro interminável debaixo de sol. Ao menos fui com a bota.

Chegamos mortos de cansaço ao topo, suados, com fome, com sede, e sabíamos que ainda tinha a descida. Mas lá do alto, que vista. Dava para admirar todos os mares de morros possíveis e ainda espiar o litoral, para onde iríamos em seguida. Tudo tinha valido a pena.

Para desfrutar comendo um polenguinho! (Foto Vanessa Henriques)

Descemos (o que eu acho mais difícil que subir) e saímos desesperados por um gole de água. Paramos no primeiro restaurante. Só aceitava dinheiro. Compramos o que deu: duas garrafas de água e uma salada caprese. E desde então, ficamos cada vez mais nutella.

O detalhe é que já subimos este morro outras duas vezes. Talvez minhas raízes não estejam totalmente mortas.

Vi passarinho verde

Por Vanessa Henriques

Hoje fui surpreendida por um novo amigo. Fui tomar o meu café da manhã e, como de praxe, cortei um restinho do meu mamão para colocar no nosso comedouro — que é, sem rodeios, um prato de planta amarrado com um arame (pois antes era fita crepe e, obviamente, eles voavam) onde deixamos frutas para os passarinhos.

Lá da cozinha, ouvi um barulhinho diferente. Era um periquito-rico (que eu, como todo mundo, chamo de maritaca) bem à vontade, com um naco de mamão na boca e resmungando alguma coisa, como fazem os psitacídeos. Quando notou a minha presença, toda torta no sofá tentando focar a câmera horrível do celular, saiu voando.

No começo, os passarinhos não gostavam de tanto improviso. Veja bem, as condições eram ruins, a fita crepe vivia desgrudando, as frutas ficavam pretas (já que ninguém as comia) e se chovia ou ventava, corria-se o risco de sair voando com prato e tudo.

Demoraram para aparecer os primeiros penosos, curiosos e famintos. Mas eles apareceram. Um a um, fomos colecionando visitantes. Os cambacicas, pequeninos e abusados, tomando água de cabeça para baixo. Os sanhaços cinzentos, que sempre vêm em pares, para vigiar. Os sanhaços do coqueiro, maiores e falastrões, espantando que tivesse por ali. Os estalinhos dos beija-flores. O canto manjado do sabiá. A curiosidade e o piado forte, que sempre me assusta, do bem-te-vi.

Os periquitos, no entanto, nunca tinham se aventurado por ali. Há no meu prédio uma série de coqueiros plantados no jardim, e nós nos contentávamos em vê-los lá de cima, beliscando frutinhas e matraqueando. Eis que um descobriu o que as outras espécies já estão cansadas de saber: sempre tem um mamão, uma bananinha, às vezes outra fruta (que eles ignoram, os ingratos), geralmente de manhã, quando essa moça grande e estabanada do celular fica tentando te fotografar, ou de tarde, quando um barbudo fica imóvel no sofá tentando te espiar com um guia de aves na mão.

oi! (Foto: Vanessa Henriques)

Me divirto pensando em como eles encontram esse pratinho, na ponta de uma varanda no mar de prédio e de árvores desta vila. Pelo cheiro? Pela cor? Observando os outros penosos que param por ali?

E, depois de encontrado, o que fazer? Voltar sorrateiro, para ninguém perceber, e garantir o sua rodelinha de banana? Ou contar para a galera, trazer a passarada toda, fazer algazarra, e entrar de vez na lista de parasitas da nossa fruteira? São grandes reflexões para um corpo tão pequeno e tão pouca fruta.

Dá uma trabalheira manter os visitantes contentes. Quando eles ficam mais à vontade, não se envergonham de deixar seus cocôs de frutinha e sementes pela varanda. Nem de piar alto quando não tem nada para comer. Sem contar as brigas entre eles.

Mas é um charme tremendo dizer que acordou, em plena São Paulo, com o barulho dos penosos na janela. E vale a pena, para ficar em dias como esse, como quem vê passarinho verde.