A pipa

Por Vanessa Henriques

Por um bom tempo pandêmico — vá lá, uns 6, 8 meses — um vizinho do meu prédio empina pipas de sua janela todos os dias. Eu percebi enquanto trabalhava na sala, de frente pra janela, ainda me acostumando à parca ergonomia do home office.

Eu achei bonito, sabe? A gente trancado em casa, sem saber o que seria do mundo diante de um vírus microscópico. Mas alguém saía na janela do décimo andar, e mostrava que o vento ainda estava por aí, que nós ainda estávamos aqui, e que ainda conservávamos um pouco da nossa ousadia. 

Eu nunca fui muito chegada em pipas, mas gosto do seu princípio de desafiar o vento, rasgar a monotonia do céu com cores, sempre com seu jogo de puxar e soltar feito com equilíbrio. Preferia voar em balanços, agarrada na segurança pífia que a cordinha deixa nas mãos. Soltar não é meu forte.

Já o vizinho continuou a empinar sua pipa relaxadamente. Logo imaginei um pai aflito dentro de casa, sem saber mais o que oferecer de entretenimento para os filhos, que recorreu à pipa para entretê-los nos dias mais críticos. Estiquei o olhar pra cima da minha janela, como que para confirmar esse enredo, mas só vi um homem adulto. Ele olhou para baixo, e eu desviei o olhar. 

Uma pipa tão pipa no céu (Foto: Vanessa Henriques)

Curioso. Comecei a reparar que ele soltava pipa mais de uma vez por dia, de diferentes cores, que conseguiam subir bem alto, muito além dos limites do condomínio. Comecei a trabalhar em outro cômodo, e esqueci do vizinho e dos quadrados. 

Com o passar dos meses, a pipa continuava no céu, mas eu só conseguia ver os restos das rabiolas, que passaram a enrolar nas minhas plantas. Um papagaio azul atrapalhando os papagaios verdes, que moram na palmeira aqui em frente. O barulho chato da vareta batendo na grade da varanda, depois na parede, depois no vidro da janela, até conseguir alçar voo. 

Irritada, recorri ao síndico. Prometeu estudar alguma medida, mas também disse que o vizinho em questão “era complicado”, seja lá o que isso signifique. E eu vou colecionando restos de rabiolas na minha floreira…

Não tenho esperanças que ele vá mudar, ou mesmo que seja multado ou advertido. O que mais me decepciona é saber que ele conseguiu tirar a pouca beleza dos dias que vivemos com o excesso. Fosse uma pipa, vez ou outra, tudo bem. Mas todo dia, cansou. É como essa quarentena, que ofuscou o brilho dos dias de preguiça em casa.

As pipas me lembram, todos os dias, de que ainda estou presa aqui, irritada com o que antes me agradava, mudando meus gostos e meus humores sem nem perceber. Quando elas voltarem a colorir o céu, irrestritas, meu voo já não será mais o mesmo. 

Vendeu-se

Por Vanessa Henriques

Alguém insiste: vamos lá na nossa rua

Eu vou

Mas na rua já não há mais nada de mim.

 

A rua da minha lembrança era ampla, com árvores, pouca gente

Era sem pressa, sem tempo, brincar de ver nuvens

Era um portão barulhento, uma porta pesada, e o alívio de estar protegida da chuva ou do perigo.

 

Agora vejo prédios altos, desajeitados na minha rua

Carros por todos os lados, subindo pelas paredes

Ela não foi feita para comportá-los.

 

E da casa, só sobrou uma fresta, um muro alto, nada mais se vê.

E de mim só sobrou essa, lembrança do que não se pode mais ser.

Há tantas casas [croniquices, 7]

Quem disse que eu me mudei?
Não importa que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa em que nasceu.
(Mario Quintana)

Por Vanessa Henriques

Na minha cabeça, nossa casa já existe. Ela tem o charme de um projeto assinado de arquiteto, a despretensão de perfis hipsters de decoração no Instagram e o acolhimento que a memória afetiva da infância almeja.

A estrutura é simples, o terreno é largo. Um janelão na frente, um belo jardim, uma porta veneziana, trepadeiras que já dominaram a cobertura da garagem. A sala é espaçosa, sem luxo. A cozinha é grande, e tem panelas até pela barra do teto. A mesa de jantar cabe bastante gente, e cabe só nós, se a ocasião pedir. 

O quintal é a melhor parte da casa, com a horta ladeando o terreno, um pomar modesto, uns bancos e redes para descansar. Um balanço para os pequenos, um comedouro para os penosos. Uma mesa de madeira para almoçar ou para algum jogo de tabuleiro.

Nela cabem todos os nossos sonhos, os nossos desejos e projeções. Mas ela não cabe no nosso bolso, na nossa cidade, na nossa vida. E todo dia ela fica ali no cantinho da mente, pedindo atenção. 

Às vezes eu acho que deveria desistir, botar logo o pé no chão, encarar que o que tenho pela frente, ao menos no futuro próximo, é um apartamento (que eu amo) alugado, uma poupança para vinhos e viagens, e está tudo bem. Não há nada de errado nisso, e eu consigo me sentir muito bem na nossa casa atual. 

Uma casa (Foto: Carlos Oliveira)

Só que a gente coloca o tênis, e começa a fazer uma caminhada longa pelo bairro, e a cabeça vai voando longe. Varanda! Cobogós! Um salgueiro na calçada! Um redário móvel! Um canteiro de temperos! Uma lareira! Um piso aquecido! (esse dia fez frio)

Eu não sei se um dia a casa sai da nossa cabeça e vem pro mundo real — e, se isso acontecer, o que vamos colocar no lugar dela. Eu sei que nós sonhamos bem, sonhamos bonito. Só que temos uma baita dificuldade de tirar as coisas do papel.

Talvez a casa continue sendo a fantasia última de felicidade, a panaceia perfeita para uma vida em comunidade que não desfrutamos, um lugar para depositar nossa esperança de trabalhar menos (ou de um escritório confortável feito por nós), de plantar mais, de desfrutar da nossa completa companhia, sem intermediários ou preocupações. 

E isso significa que a casa pode começar hoje, agora, se nós quisermos. Podemos balançar em redes imaginárias, esquentar fondues na boca do fogão, plantar mudas ao invés de árvores, mudar uns móveis de lugar, criar castelos debaixo de cobertores. A casa já tem alicerce, já pode ser habitada.

Só que fazer planos é sempre melhor (ou mais fácil) do que realizá-los. Eu quero transformar em ação os meus pensamentos — e eu tento, no meu ritmo, sempre devagar. Mas também não quero perder a vontade de projetar uma outra vida, um horizonte, uma casa quentinha capaz de receber todas as minhas ideias tolas. 

Então a casa é meu elefante, que eu construo todo dia e carrego comigo num mundo enfastiado que já não crê em casas. Tem dia que ela cresce, ocupa o terreno todo, se enche de flor. Em outros, vira uma miniatura, e se não tomo cuidado, alguém pode pisar. O poeta recomeçava todo dia. Eu, por ora, também.

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“Nem todos entenderiam o que queríamos daquela velha casa. Iriam nos chamar de loucos, inocentes, diriam que nós só quebraríamos a cara, que o mundo não funciona assim. Talvez por isso a casa fosse perfeita: ela era a personificação de tudo que acreditávamos.” A Casa, 30 de janeiro de 2014

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[croniquices, 7] Este texto integra as comemorações dos 7 anos do blog

A vida é um moinho, dizem. Aperta e afrouxa, sossega e desinquieta.

Por isso selecionei alguns textos que me tocaram nessa volta ao passado e resolvi dar uma cara de futuro para eles. A inspiração vem em trechos, o presente vem completo. Espero que apreciem e se reencontrem também.

Mascotes e mascates

Por Vanessa Henriques

Constatei esta semana, com pesar, que as redes sociais estão acabando com o meu bairro. Não pense que farei aqui um retrato melodramático de pais que mandam mensagem via WhatsApp para os filhos na mesa de jantar. Nem do acirramento do fla-flu de paneleiros e mortadelas. A questão aqui é outra.

Primeiro, cabe dizer que moro na Vila Mascote. Esse bairro simpático, cheio de espigões neoclássicos e árvores, está também repleto de mascotes. Cachorros de todos os tamanhos, gatos, chinchilas e até mesmo uma barulhenta cacatua foram vistos e ouvidos por estas ruas.

Os mascotes têm pedigree e são levados para passear com regularidade. Só que — e aí começo a abordar o problema — esses passeios estão mais para uma volta zumbi pelo bairro. Pets que aguardam o dia todo por seus amados donos precisam disputar sua atenção com outros pets mimados o dia todo: os celulares.

E dá-lhe cachorrões enormes, afoitos, passeando no passo do elefantinho enquanto o dono rola a tela infinita de bobagens no Facebook. Não aprecia, assim, as varandas envidraçadas, as calçadas apertadas e batizadas, e todo o ar de refinamento da prima modesta de Moema.

O ar despojado e conectado dos moradores leva a um segundo problema: os estabelecimentos comerciais. Sou afeita a um bom comércio local. Vou a inauguração de supermercado, tomo café em todas as padarias, prestigio todos os eventos sociais — à exceção da infame passeata pela paz que acabou sendo interrompida por um roubo.

Mas nesses 3 anos vivendo entre mascotes, ainda restam estabelecimentos desconhecidos. Não de minha parte. Posso ser fácil de se ver por aí, mas gosto de ser conquistada. Uma boa panfletagem, carro de som na rua, distribuição de pipoca, quem não gosta?

Eis que num dia qualquer o celular vibra na mesa. A pizzaria da rua de baixo, na frente da qual eu já passei mil vezes, me pede para adicioná-la no Instagram. A mesma pizzaria sem placa na fachada, a mesma que nunca me deu um ímã de geladeira. A que nunca encartou um cardápio no meu jornal ou deixou um panfleto na caixinha de correspondência.

Passada a revolta inicial, veio a dúvida: como eles sabem que eu moro no bairro? Rodei minhas curtidas e descobri: eu tinha começado a seguir há algumas semanas o perfil do salão de cabeleireiro que frequento. Eles são capazes de me achar assim, mas não me cortejam quando eu passo na calçada.

Restava decidir. Por que eu ficaria vendo fotos de pizzas que nunca consumi na minha timeline? Ficaria igual a tantos outros mascotes, esperando pela volta que nunca vem? Ou deveria me render ao mundo digital e tentar espiar se o bendito telefone e cardápio estão na descrição da bio?

Não me rendi. Se não me deu brinde quando eu tava na rua, não vem tentar ser meu seguidor. Deixei de seguir o salão e desativei o GPS e qualquer indicação de que moro ali. Na rua, eu gosto mesmo é de passear sem coleira. 

Sereísmo no Tietê

Por Vanessa Henriques

Ando preocupada com a cidade de São Paulo. Terra de bandeirantes, tropeiros e hipsters, tem sua história ligada ao novo — com a mesma disposição para o progresso e para o provincianismo. Quem mora ou circula por aqui rapidamente percebe a inclinação da cidade para modismos passageiros, que nos arrebatam por meses, até que caem no ridículo ou no esquecimento.

No princípio, havia o cupcake. Depois o brigadeiro gourmet (e a inevitável brigaderia). Depois veio a onda latina, com a paleta mexicana e as churrerias com churros banhados a ouro (a julgar pelo preço). Os cafés descolados com móveis de madeira crua e suculentas em xícaras. A doçaria portuguesa de grife, que cobra por um doce o preço de 10 pasteis de nata vendidos no pitoresco Habib´s. Os food trucks estacionados em food parks. As hamburguerias com toque vintage. E, pra sair do campo da comida, as barbearias retrô.

Todo estes estabelecimentos, de uma forma ou de outra, me parecem com os dias contados. Se você pensa em investir em uma paleteria em pleno 2018, você perdeu a cabeça. Mas o food truck não está tão diferente assim.

Minha preocupação vem do fato de que não há ainda uma nova moda despontando — ou, ao menos, ela escapa de minha sensibilidade. Circulei por bairros como Pinheiros e Vila Madalena, mais do mesmo. Av. Paulista? Só quer saber de museus e cafés, moda antiga. Centro? Restaurantes de imigrantes lotados de branquelos com guia de jornal na mão.

Na falta de uma novidade comercial visível, passei a observar o comportamento dos paulistanos. No carnaval, que agora agita as ruas apertadas do centro e os muros de samambaia da 23 de maio, ficou clara a preferência por algumas figuras míticas como sereias e unicórnios.

Eles tiveram a capacidade de influenciar o vestuário, as cores de cabelos e os hábitos praieiros, além da culinária multicolorida que invadiu brigaderias, cafeterias e churrerias. A influência foi tanta que alguns já bradavam pelo seu natural declínio, como sói ocorrer com toda moda paulistana. Ninguém quer apostar numa entidade caída.

Acho graça nessa aura mística, mas não deixo de pensar em suas contradições. Talvez seja uma espécie de compensação, afinal não faz sentido invocar a criatura chifruda multicolorida em meio ao cinza de São Paulo. E o Tristão paulistano, onde coloca sua cauda para trabalhar? Cogita praticar sereísmo no rio Tietê?

Aguardo ansiosamente qual será a próxima figura mítica a desembarcar no planalto de Piratininga. Minha torcida é por um ícone nacional, como o saci ou o curupira (mulas sem cabeça já vemos aos montes por aí). E se abrir uma coisaria nova, também estaremos atentos.

Sem lenço, com documento

Por Vanessa Henriques

“Primeiramente de tudo, uma boa tarde a todos!”. E assim começa mais uma viagem alucinante no metrô de São Paulo. Há comércio variado nesta terra de trabalhadores: amendoins (na validade!), fones de ouvido (testa na hora), lente olho de peixe (pra não cortar ninguém na selfie) e, não menos importante, os queridos porta-documentos.

Quando vi o primeiro ambulante oferecendo porta-documentos, dei uma risada comigo mesma. Quem estaria chacoalhando no metrô, 6 horas da matina, e pararia para pensar: “caramba, não tenho um plastiquinho para o meu título eleitoral!!”.

É claro que eu estava errada. O comércio popular não falha e tem tino para os desequilíbrios de oferta e demanda. Já faz alguns meses que vejo consumidores satisfeitos adquirindo porta-documentos e encerrando uma vida desregrada.

Este é um produto que se vende sozinho. Só de ouvir o vendedor listar todos os documentos que temos que carregar por aí, o marketing está feito: RGCPFCNHTÍTULODEELEITORCERTIFICADODERESERVISTA.

E o comércio, assim como o metrô, não fica parado (só às vezes), e já evoluiu: hoje em dia é possível encontrar no shopping metrô “carteiras de couro sintético, costuradas por dentro e por fora, e com plásticos para você colocar todos os seus documentos”.

É a praticidade do porta-documento com a necessidade da carteira. É puro street style. E quem chama com R$5 não leva uma, mas duas! Preciso dizer que faz sucesso?

Há anos o metrô faz campanha contra o comércio ambulante. Mas o paulistano já se apegou demais a ele para denunciá-lo. Ele preza pela nossa fome, nosso entretenimento e, ultimamente, pelo nosso pertencimento cívico.

Tanto que outro dia ouvi um autoproclamado marreteiro pedindo dinheiro no vagão após o fiscal confiscar sua mercadoria. As pessoas contribuíram, complacentes, aguardando o retorno do pai de família ao vagão com novos produtos.

O porta-documento tem a vantagem de ser facilmente escondido do “rapa”: é leve, discreto, e cabe no bolso — o que já é uma propaganda do produto. O sucesso de vendas é garantido.

Só tem um probleminha. A TV do metrô anunciava, em letras garrafais: “Brasil terá documento único eletrônico até julho de 2018”.

Tudo bem, se tudo der errado, sempre nos restarão os amendoins.

 

 

 

 

 

O telefone tocou novamente

Por Vanessa Henriques

Turururururu… Turururururu…

Um dia, foi no metrô. O barulhinho abafado só podia vir do celular jogado na mochila. Fiz uma manobra ousada no vagão cheio para descobrir que não era o meu celular, e sim de uma moça sentada logo ali.

Turururururu… Turururururu…

Esse dia foi na rua, já voltando para casa. Rua relativamente vazia, hora avançada, podia ser minha mãe perguntando se eu tinha sido sequestrada (ela recebe telefonemas semanais do tipo), melhor olhar. Manobra da mochila, vasculho o bolso, e o barulho para. Era do segurança do prédio.

Turururururu… Turururururu…

Aquela outra vez foi no ônibus, dia de chuva, encostada-quase-caindo na sanfona. Já calejada, deixei tocar, se esgoelar. Devia de ser o celular do ambulante, ou do cobrador, ou minha mãe retornando pro ladrão com o dinheiro do meu resgate. Parou.

Toda a trama cheira ao clássico Pedrinho e o Lobo: um dia realmente será o meu celular a chacoalhar no bolso, com uma irrecusável proposta de emprego, um prêmio de promoção de supermercado ou quem sabe uma herança esquecida. Deixarei passar sem dó, com a bênção da ignorância.

Mas o que me irrita não é o infortúnio da ligação perdida ou a cara de besta de perceber que ninguém te ama, ninguém te quer (a parte de comer barata é opcional). O que incomoda é pensar que nos tornamos seres que andam com as mesmas duas marcas de celular no bolso — e a Apple e a Samsung claramente não ligam muito para toques de celular.

Nem sempre foi assim: num passado não muito longínquo toque de celular bacana era aquele ritmado, com a música do momento na sua versão polifônica. O ringtone foi sucesso absoluto e coroava a modernidade junto com o flip, a tela colorida e o fim das antenas.

Operadoras ofereciam ringtones variados, saídos das paradas do rádio. Eu mesma me lembro de ter instalado um toque da música do Queen (it´s a kind of magiiiic) que me acompanhou por um bom tempo. Havia um problema, como em toda tecnologia de ponta: as músicas demoram muito para chegar a um ponto conhecido (geralmente o refrão), e muitas vezes ninguém reconhecia seu ringtone escolhido com tanto esforço.

Mas havia o mais importante: diversidade. Por mais que muita gente gostasse da Ivete Sangalo, teria toda uma discografia para escolher. Hoje todos ouvimos a mesma música da Ivete (e uma mais ou menos, não exatamente um hit).

Por ora, decidi fazer uma intoxicação forçada: deixo o celular no silencioso, assim não corro mais o risco de ser enganada. Criei um código com minha mãe para quando o sequestro for real. Prefiro um celular mudo a um sem personalidade nenhuma! — brado com meu Samsung Android com capinha do Mickey na mão.

Vizinhança atacada

Por Vanessa Henriques

Poucas coisas são tão adultas e tão deprimentes quanto se animar com inauguração de supermercado. Ainda assim, geralmente é um acontecimento que pára um bairro, não importa seu tamanho (e nem venha me dizer que na metrópole isso não acontece, pois tudo não passa de uma grande paróquia colada na outra).

O assunto me veio à cabeça quando percebi que iriam abrir dois supermercados no meu bairro. Na verdade só um estava abrindo, o outro tinha fechado para mudar de marca (mas não de dono). Ficava atenta às conversas no ônibus: “vai abrir logo”, “vai ser um atacadista”, “vão ampliar”. Ficou claro que a expectativa não era só minha.

E é também o tipo de coisa que não tem como dar certo, já que a muvuca é certa e a vantagem duvidosa. Carros de som anunciam ofertas extraordinárias, mas se esquecem de mencionar as singelas filas nos caixas cobertos por bexigas.

Lembro-me da inauguração de um grande Carrefour na minha cidade. Fomos todos (sim, os cinco: pai, mãe e três filhas) conhecer o moderno hipermercado, com vidro temperado na frente, esteira rolante, uma loucura para os padrões de Diadema.

Andamos pelos corredores, achamos algumas promoções, até que fomos enfrentar a fila. Lembro-me que no carrinho tinham duas pizzas da Sadia, que seriam nossa janta. E ficamos por horas naquela fila que não andava por causa de pizzas da Sadia. Não consigo pensar num desconto que tivesse valido a aventura.

Com meu marido foi pior: ele foi na inauguração de um mercado que havia mudado de bandeira, mas que ele frequentava desde a infância. Enquanto aguardava para comer uma fatia do enorme bolo na porta de entrada (sim, teve até bolo!), algumas pessoas passaram por ele e soltaram a pérola: “nossa, agora só vai dar playboyzinho que nem ele nesse mercado” — tudo isso porque ele estava de camiseta polo. Ao menos o bolo estava gostoso.

Na última semana saiu o veredito das inaugurações do bairro: um abriria na quarta, o outro na sexta. O espírito provinciano se animou, deixei uma listinha preparada e fiquei atenta na janela do ônibus para acompanhar os primeiros movimentos.

O da quarta era daqueles minimercados, abriu sem grande alarde. Já o da sexta, foi na versão atacado (e não é que virou atacadista mesmo?). O congestionamento era inacreditável. Ouvi boatos no ônibus que não estavam cobrando as sacolinhas, mas só nos 3 primeiros dias. Luxo total.

Não tive coragem de encarar a multidão nos primeiros dias. Programei a estreia para o domingo, depois da missa. Não devo ter sido a única. As orações eram cortadas pelas buzinas ensandecidas lá fora, de motoristas não muito felizes pela confusão no trânsito local.

O padre encerrou a missa recomendando que quem tivesse de carro rezasse um terço no caminho e tivesse muita paciência. Saí com o resto dos pedestres, muitos com sacolinhas debaixo do braço. E fomos em procissão rumo à boa nova.

Choveu

Por Vanessa Henriques

Faz quatro dias que não chove.

Não que não tenha chovido

mas chuva eu não vi.

 

Vi vento uivando

janela batendo

trovão lá no alto

nuvem preta.

 

Gota d´água, não vi.

Vi na poça

na sarjeta

mas nenhuma molhou meu rosto.

 

O tempo abafado

a alma estafada

mas a chuva teimou em me abandonar.

 

Já ouço novamente os trovões

de hoje não passa:

ou chove ela,

ou chove eu.

Cosme e Damião

Por Vanessa Henriques

Outro dia, folheando sem vontade um cardápio de lanchonete, procurava uma sobremesa que me convencesse de que seria imperativo pedir uma sobremesa. Infelizmente, não foi o caso. O gordo menu trazia um festival de obviedades açucaradas: mousse de chocolate e de maracujá, sorvete de massa, pudim de leite e o indefectível petit gateau.

Quando vi, ao invés de faminta, estava refletindo sobre o invocado bolinho: há alguns anos ele adentrou, sorrateiro, a doçaria brasileira, e lá se instalou com ares de rei. Não sei precisar bem quando, muito menos como, mas a sobremesa caiu no gosto de muita gente, iniciando uma pequena tradição.

O cupcake, por sua vez, não teve lá tanta sorte. Foi a sobremesa da moda subsequente, invadiu cafés e padarias, ousou nos sabores e cores mais estrambólicos, mas depois de alguns meses (anos talvez?) começou a sumir das vitrines.

A bola da vez, se vocês concordarem comigo, são os velhos churros. Espalham-se pela cidade nas mais variadas formas (mini, recheados, espanhóis, com cobertura) e veículos (já vi incontáveis food trucks de churros). Desconfio que nem Seu Madruga ou Dona Florinda desconfiavam que estaríamos, em pleno século XXI, pirando com churros.

É certo que o capitalismo tem seus tortuosos caminhos, e que sabemos que a sobremesa queridinha de hoje não valerá nada amanhã. Mas eu não tenho dó do cupcake, e muito menos dos churros. Tenho dó de nós, restritos a uns modismos bestas e sendo privados das mais deliciosas receitas de Ofélia.

Qual foi a última vez que você viu por aí um vistoso pavê de bolacha maisena? Ou aquele doce multicolorido de gelatina? Manjar de coco com ameixa? O clássico creme de papaya?

Vejam só o que perdemos às custas de um bolinho de chocolate (muitas vezes bem do sem graça) com uma bola de sorvete. Se você parar para pensar, o caso vai na contramão da famigerada gourmetização, já que um bolo de chocolate jamais será como um doce com fruta em calda ou que harmonize com cassis.

Garçom, a conta e um café!